f. lópez sj (jflopezperez@gmail.com)
Altamira (PA), Amazônia, Brasil, 04/04/2015
Sexta Feira Santa, o rio Xingu foi sentenciado a morte, está sendo cortado e agoniza… Sua indômita e fecunda liberdade milenária é acorrentada pela Hidroelétrica Belo Monte, “feio monstro” – apelido dado pelo povo… Com ele morrem culturas milenárias, locais e simbologias sagradas, fontes espirituais de vida, ilhas e várzeas, igarapés e florestas, plantas e animais. E são violados e feridos todos os habitantes da região: indígenas e ribeirinhos, populações urbanas e vilas, todos os povos banhados e alimentados pelas águas do Xingu e seus afluentes desde tempos imemoriais. Toda a vida da região se empobrece.
Via Sacra em Altamira (4/4/2015), cedo na manhã, ao raiar do sol, um “rio de gente” firme e de cabeça erguida, avança pelas ruas da cidade. É o povo simples, povo de Deus, que caminha valente rezando e denunciando a injustiça, o abuso e a morte imposta pelos poderosos e seus capangas, amigos dos “Césares”, que veneram ao ídolo dinheiro e seus faraônicos projetos de destruição da natureza e de escravidão do povo. Acordando à consciência da cidade o “rio de gente” avança cantando e anunciando que o Projeto de Vida Abundante de Deus (Jo 10,10) é mais forte que a morte, que a Justiça vence a injustiça, a Liberdade à escravidão, o Amor ao ódio, o Deus da Vida aos ídolos de morte, do poder e o dinheiro.
O bispo da Prelazia do Xingu, dom Erwin Kräutler, encabeça a “Via Sacra”. Vai à frente, como pastor ao serviço da Amazônia e seus povos, defendendo sua gente, rios e florestas, cuidando de toda a vida da Criação, da Mãe Terra que a todos amamenta e sustenta. Dois seguranças o acompanham na procissão. Os poderosos decretaram sua morte faz anos. Porém, sua verdadeira segurança está, sobretudo, nas Mãos de Deus presente nas centenas de mãos e corações do povo que o ama, o cuida e o acompanha. Juntos, “como membros de um mesmo corpo que tem Cristo por cabeça” (1 Cor 12), bispo e povo sofrem e choram, amam e lutam, denunciam e anunciam, rezam e cantam com teimosia e profecia a vitória da Cruz e da Justiça, da Ressurreição e da Vida sobre todo tipo de morte.
“rio vivo de gente”, ao longo da Via Sacra, anuncia e denuncia: “Jesus caiu e se levantou. Quantas pessoas em Altamira caem pelo descaso das autoridades e não conseguem se levantar por falta de solidariedade, apoio, estímulo, ajuda… Em nossa cidade há tantas pessoas que precisam de médico. Enfrentam demoradas filas na busca de diminuir suas dores e solucionar seus problemas de saúde… Quantas Verônicas existem em nossa cidade? Há tantos que precisam de alguém para enxugar suas lágrimas, seu cansaço e seu sofrimento: indígenas, ribeirinhos, colonos, moradores da periferia de Altamira… Que as mulheres sejam tratadas com carinho e respeito, com dignidade e não como objetos de consumo e prazer, de espoliação e domínio. Jesus é pregado na cruz quando a sociedade permite que crianças, adolescentes e jovens sejam traficadas, explorados, envolvidos nas drogas e em processos de violência e morte. Na região do Xingu e em Altamira muitos morrem pelo descaso das autoridades, pelas consequências dos grandes projetos… Porém, a morte de Jesus trouxe para a humanidade a certeza da Ressurreição…”
Hoje, os Judas, Pilatos e autoridades corruptas continuam soltas. Dobram-se ao ídolo do poder e do dinheiro. Vendem os povos, rios e florestas por “trinta moedas”. Lavam-se as mãos, sentenciam e entregam os justos que defendem a Vida. E soltam os Barrabás e seus mandantes, ladrões e bandidos, que espalham a morte na Amazônia.
Muitas pessoas já tombaram e foram crucificadas na Via Sacra do Xingu. A Ir. Dorothy Stang (12/02/2005), missionária norte-americana, que atuava junto aos camponeses e camponesas do Projeto de Desenvolvimento Sustentável Esperança (PDS Esperança), no município de Anapu, Pará. O casal José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo (24/05/2011) que lutava desde 2008 contra a devastação florestal e a exploração ilegal de madeira na região de Maçaranduba, sudeste do Pará; O agricultor Erenilton Pereira dos Santos (28/05/2011) e tantas outras pessoas assassinadas… Segundo o Jornal Correio Braziliense (12/02/2015) “nos 10 anos que se seguiram à morte de Irmã Dorothy a situação permanece praticamente inalterada. De 2005 a 2014, o número total de assassinatos no campo diminuiu. Foram 334.
O Pará, porém, concentrou 118 das mortes, 35,3%. Das 548 tentativas de assassinato, 165 aconteceram no Pará. Das 2.118 das pessoas ameaçadas de morte, 617 viviam no Pará”.
Várias lideranças ribeirinhas, camponesas e indígenas continuam hoje ameaçadas e marcadas para morrer na região do Xingu. É forte o testemunho e compromisso valente delas, que defendem com suas vidas a Vida da Amazônia e seus povos. Um ribeirinho extrativista (não damos seu nome por segurança), que mora a 400 km de rios de Altamira (três dias de voadeira!), partilha sua dolorosa e profética experiência: “Eu só queria defender minha família e a terra que vivemos. Os madeireiros, grileiros e fazendeiros, quando eles querem tomar uma terra, primeiro entram numa boazinha. Depois, quando pegam tudo, dão um chute em você. Ou você fica de agregado ou vai embora, porque senão eles matam e ficam com toda a terra e suas pertenças. A raiva deles comigo foi porque eu nunca aceitei. O fazendeiro veio em minha casa querendo comprar meu sitio por dez mil reais. Eu não aceitei e ele falou para mim: «depois não venha você reclamar!» Ele passou a invadir e destruir meu castanhal falando que como eu não quis vender para ele o problema era meu…”
Este irmão extrativista, profeta de nosso tempo, passou mais de um ano com custodia policial domiciliar na sua comunidade ribeirinha… Igual foi o caso de outros moradores da região.
E como alertou o nosso irmão extrativista, a Hidrelétrica Belo Monte (CCBM) e a Norte Energia, “primeiro entram numa boazinha”, inundando com regalias (voadeiras, motores, carros, casas, etc.) às comunidades, mas pouco a pouco ficam com tudo. Em Altamira e ao longo do ribeirão as lideranças comentam: “A empresa não informa às comunidades nem conta a verdade. Muita gente está desinformada e com medo do que vai acontecer. É muito difícil lutar contra tanto «presentinho» que bate encima das muitas necessidades que o povo tem. Uma consigna importante é: «Há que comer a isca, mas não engolir o anzol»”
Por outro lado, apesar da demarcação das Terras Indígenas e da implantação das Reservas Extrativistas (Resex), continuam os processos de invasão de madeireiras e garimpeiros, de grilagem de terras.
E as autoridades sabem o que está acontecendo… Só têm que olhar nos informes e nas cartografias oficiais sobre desmatamento (se não acreditam nos estudos paralelos feitos por ONGs). Qualquer cidadão com acesso a internet pode olhar em Google Earth (ainda que as fotos não sejam atuais) a gravidade do avanço do desmatamento, em “espinha de peixe”, ao longo das estradas BR 230 (Transamazônica) e BR 163 (Santarém-Cuiabá). Madeireiros, grileiros e garimpeiros não respeitam nem Resex, nem Terras Indígenas. E o governo e suas instituições sabem que estas invasões estão acontecendo… E não fazem nada! Por quê? Incapacidade e ineficiência? Cumplicidade e conivência? Estas perguntas estão no coração e na mente de cada cidadão, das famílias ribeirinhas e indígenas que vem invadida e destruída a Mãe Terra que os sustenta e ameaçado assim, o futuro de seus filhos e filhas.
Também é impressionante a obra faraônica da Hidroelétrica de Belo Monte. O “paredão” (barragem) e o “canal” de desvio do rio Xingu em Volta Grande, deixarão no “seco” 100 Km do leito natural do rio. E agora, na imprensa e nos jornais da TV, está ficando ao descoberto “o paredão e o canal” da corrupção bilionária desta obra faraônica, “elefante branco” de outros tempos. E o governo? Cúmplice, conivente ou ineficiente? A ditadura do capital e dos sequazes que o controlam impõe-se. Ao dinheiro fica subordinado tudo: a política, a ecologia, o cuidado e defesa da vida em todas suas formas.
E no meio de toda esta violenta e depredadora realidade desenvolvimentista, estão os povos indígenas em situação de isolamento que vivem na bacia do rio Xingu dos que se têm umas dez referências. Eles são os mais vulneráveis. Suas vidas estão ameaçadas. Com o “ecocidio” provocado pelos megaempreendimentos da região está decretado o genocídio destes índios isolados! E quem se faz responsável por estas vidas vulneráveis? Onde está o governo para protegê-los? E a sociedade civil, fica calada? Brasil é o país do mundo com maior número de grupos humanos isolados, com mais de 1003 referências, a maioria delas confirmadas pela própria Funai (Fundação Nacional do Indio). Eles fugiram para o centro da mata e cabeceiras dos rios. Isolaram-se devido à violência do sistema colonial de ontem, e neocolonial capitalista e depredador de hoje. Com os megaempreendimentos e a crescente pressão sobre os recursos naturais da Amazônia (que concentra 1/3 da biodiversidade do planeta), os povos indígenas isolados estão ficando sem espaço e pedindo socorro!
Muitos são os sinais de morte na Amazônia, mas muito mais fortes são as sementes de vida que continuam germinando no meio das ruas, florestas e rios da Amazônia. No nível local, os povos continuam em pé, com a cabeça erguida, com dignidade lutando e avançando, pintados e enfeitados, bailando ao som dos maracás a dança da vida. No nível global a consciência ecológica vai crescendo e também o enfrentamento ao sistema econômico capitalista imposto que semeia a destruição e a morte por toda a redondeza da terra.
No nível eclesial, também há fortes sinais de esperança. A Encíclica sobre Ecologia que nos próximos meses será lançada pelo Papa Francisco e que denuncia e anuncia profeticamente a responsabilidade humana com a defesa da vida e o cuidado de toda a Criação. Também em setembro de 2009 foi oficializada a Rede Eclesial Pan Amazônica (REPAM) com o firme apoio do Papa: “A missão da Igreja deve ser incentivada e relançada na Amazônia”. A REPAM é uma iniciativa profética que promove uma missão mais geoestratégica na Pan Amazônia e no mundo. A igreja é a instituição mais presente em toda a região. A REPAM está rearticulando a missão da Igreja na Amazônia junto a seus povos. Uma missão que escuta o clamor da vida da região e caminha com seus povos.
A REPAM busca desenvolver sua missão na Amazônia fortalecendo e articulando os serviços institucionais (conectividade e estabilidade), com os serviços inseridos (proximidade e inserção) e com os serviços itinerantes (conectividade e inclusão), tendo assim uma maior incidência na sua ação profética. Um signo forte de esta capacidade de serviço e incidência da REPAM é a audiência que recentemente teve em Washington-DC (19/03/2015) na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Ali denuncia a violação dos direitos humanos e ambientais que sofrem as comunidades indígenas e camponesas afetadas pelas indústrias extrativas. O bispo Pedro Barreto, Presidente do Departamento de Justiça e Solidariedade do CELAM, ameaçado também de morte por denunciar a violência da mineração no Peru, afirma no CIDH: “Queremos testemunhar a angustia e sofrimento de muitos irmãos e irmãs que vivem as consequências da devastadora e cada vez mais ameaçante atividade extrativista sem rosto humano e sem ética.”
Os povos indígenas, com seus projetos de Bom Viver, são caminhos de ressurreição e vida para a humanidade e o planeta. Essa é nossa força e esperança: O Bom Viver, a Ressurreição e a Vida vencem a morte! Dando um toque Amazônico às palavras proféticas de San Romero de América: “Se me matam, ressuscitarei na vida do meu povo”, “se nos plantam, germinaremos e nos multiplicaremos na vida das florestas, rios e povos da Amazônia!”